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domingo, 24 de fevereiro de 2008

Sagrado e profano

Esses dias estava procurando algo para forrar o bucho de um pessoal por aqui, e acabei me lembrando de dois livros que, cada um a seu modo, abordam de maneira diferente o pecado da gula. Os livros são O Livro da Cozinha Clássica, Sílvio Lancellotti, L&PM, 1999 e Batuque na Cozinha, Alexandre Medeiros, Editoras Senac Rio e Casa da Palavra, 2004.

Confesso que não sou dos mais refinados nem à mesa, tampouco ao fogão. Tenho cá meus dotes, não vou mentir, mas sou a bem dizer um troglodita no que toca à sofisticação. Sofro de horrores a filé mignon, peixes finos e aves exóticas. Sou verdadeiramente tarado, como dizem los hermanos, por comidas dietéticas e saudáveis, como sarapatel, mão de vaca, vatapá, moqueca, matambre e, porque não dizer, um magrinho leitão à pururuca. Não sei apreciar um bom vinho, mas conheço excelentes cachaças por aí. Mas, não é para falar de meus hábitos alimentares que escrevo, mas sim dos dois títulos acima.

O livro de Lancelloti, como o título sugere, é um apanhado de receitas clássicas da culinária em geral européia. Mas não é um simples livro de receitas. O Gordo teve um bom trabalho, pesquisando as histórias destas receitas, que são apresentadas como introdução a cada uma delas. São receitas, ou alquimias, como ele diz, sofisticadas, coisa de gourmet. Usam ingredientes em alguns casos finos e raros, com pontos e doses precisas. Nada de mãos de coentro. Eu, como reles mortal, não as testei e dificilmente testarei, pelas razões já expostas. Não macularia sua sacra nobreza com minhas mãos sujas do mocotó que estava picando a pouco. De todo modo, é leitura interessante. Sei que os amantes da alta gastronomia me abominam por isso, mas, ninguém é perfeito.

Já o livro de Alexandre Medeiros é uma jabuticaba. Nele são contadas as histórias de vida de quatro "tias" da Portela. Em comum, as quatro têm a vida sofrida e vitoriosa, o amor ao samba, as casas repletas de gente cantando e sambando madrugada a dentro e um descomunal talento nas panelas. Não bastassem as deliciosas histórias, ao fim de cada uma delas o autor junta um apanhado com receitas da personagem em questão. Aí a leitura vira um martírio. Chega-se a sentir o cheiro dos quitutes. São receitas simples, com ingredientes profanos, em doses gigantescas, pois são os pratos que essas mulheres serviam em seus terreiros quando tinha pagode, sempre prum mundão de gente, com uma fome de anteontem. Sinto pena dos que não teriam coragem de comer uma gigantesca porção de uma daquelas delícias, devidamente acomodado em um tijolo, enquanto o samba come solto e a cerveja esquenta um pouquinho.

Se não tive competência aqui para evidenciar o contraste entre os dois mundos, o da alta gastronomia e o dos quintais do Rio, transcrevo aqui duas receitas, uma de cada livro, para que o leitor tire suas próprias conclusões:
Peixe ensopado com pirão ao leite de coco (receita de Tia Eunice, do livro Batuque na Cozinha)
Ingredientes
  • 4 kg de corvina-de-linha
  • 3 limões
  • 1 cabeça de alho
  • 2 cebolas
  • 2 tomates sem casca e sementes
  • 2 molhos de coentro
  • 1 molho de salsa
  • 500 ml de leite de coco
  • sal e pimenta-do-reino
Modo de fazer
Separe as cabeças dos peixes e corte-os em postas largas. Coloque tudo para temperar com sal, alho socado, pimenta-do-reino e sumo de limão. Deixe descansar por pelo menos meia hora.
Soque o alho e corte os temperos bem miudinhos.
Numa grande panela, de preferência de barro, coloque um pouco de óleo ou de azeite e deixe dourar o alho e a cebola. Adicione sal e pimenta-do-reino. Retire um pouco desse refogado e separe em uma vasilha. Coloque na panela as quatro cabeças de peixe. Em seguida, coloque as postas por cima. Jogue por cima o refogado separado na vasilha, adicione o tomate, o coentro e a salsa. Mexa um pouco para o tempero se espalhar pela panela.
Quando começar a dar fervura, retire as postas com uma escumadeira, vire as cabeças no fundo e recoloque as postas por cima. Deixe cozinhar mais um pouco. Jogue o leite de coco por cima e deixe dar a fervura.
Abaixe o fogo e retire as postas e as cabeças, coloque-as em uma travessa com um pouco de molho por cima. Guarde no forno para não esfriar.
Deixe o restante do molho na panela, adicione um pouco de água e faça ali o pirão, despejando cuidadosamente a farinha de mesa com a mão e mexendo sempre com a colher de pau. O pirão vai ficar com gosto do coco também.
Acompanha arroz branco.

Filé de Peixe Walewska (receita de Sílvio Lancellotti, do Livro da Cozinha Clássica)
Ingredientes para 1 porção: 1 filé de peixe, preferivelmente linguado. Sal. Pimenta-do-reino. 1 xícara de chá de fumê de peixe. 2 postas de lagosta, cerca de 1 cm de espessura cada qual. Algumas lâminas de trufas - ou, em seu lugar, substituição barata, de gordos cogumelos frescos, do tipo shiitake. 1 xícara de molho Mornay.
Modo de fazer: Tempero o peixe com o sal e a pimenta-do-reino. Pocheio por três minutos no fumê fervente. Retiro. escorro. Deposito num prato apropriado e refratário. Cubro com as fatias de lagosta e com as trufas. Banho com o Mornay. Levo ao forno forte, por no máximo um minuto.

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